01 Março 2011
O pai do autor líbio Hisham Matar está preso há anos pelo regime de Muammar Gaddafi. Matar falou à “Spiegel Online” sobre o futuro do seu país, o papel da Europa ao apoiar a ditadura de Gaddafi e a necessidade de verdade e reconciliação na Líbia, se o déspota cair.
A tradução é do Portal Uol, 02-03-2011.
Eis a entrevista.
Quando os protestos na Líbia começaram, vocês montaram uma espécie de sala de notícias em seu apartamento em Londres. O que vocês estão fazendo ali?
É uma rede de amigos, de líbios exilados. Fazemos uma dúzia de ligações por dia para a Líbia. Estamos tentando coletar, corroborar e publicar os relatos das testemunhas. Descobri que os médicos são fontes particularmente boas: estão acostumados a ter certo distanciamento emocional.
Como está o humor entre seus amigos?
Nos primeiros dias, houve muita ansiedade sobre o que aconteceria. Quando as coisas começaram a avançar tão rapidamente, surgiram aspirações e esperanças. Agora, a única questão que resta é quanto tempo vai levar até que Gaddafi desista – e quantas outras pessoas terão que morrer.
Em que ponto vocês tiveram certeza de que este seria o fim de Gaddafi?
Senti no sábado da semana passada, quando Benghazi ficou totalmente sob o controle dos manifestantes. Foi um ponto de virada, porque é a capital do Leste e tradicionalmente a parte mais politicamente ativa do país.
A sua família fugiu da Líbia quando o senhor tinha 15 anos de idade. O senhor então se mudou para o Cairo, e daí foi para a faculdade em Londres. O seu pai, diplomata e empresário, foi sequestrado e preso pelos homens de Gaddafi em 1990. Que papel Gaddafi teve em sua vida?
Ele roubou o meu pai de mim. Ele prendeu meus parentes, ele matou muitos dos meus amigos. Ele é meu inimigo. Contudo, pior do que minhas perdas pessoais, foi ele ter mantido todo o país atrasado e forçado o povo líbio a viver em permanente estado de loucura. Ele representa um tipo de pesadelo para a Líbia do qual estou começando a acordar.
Um pesadelo que parecia não ter fim...
Todo mundo ficou surpreso com os eventos, até as pessoas que passaram a vida inteira estudando a Líbia. Mas quando os protestos começaram, foi surpreendente como de fato não eram surpreendentes. Sinto nas vozes dos líbios que conheci toda minha vida. Parecem diferentes, seus pescoços livres das amarras. Gaddafi foi a pessoa sob a qual todos nós sofremos. Estamos todos unidos em nosso sofrimento sob seu regime.
O que o senhor pensou quando viu os governos ocidentais em 2003 declarando parceria com Gaddafi reduzindo-o desde então?
Achei asqueroso. Afinal, não estamos falando de um pobre país africano que precisa urgentemente de dinheiro líbio e faz vista grossa para a ditadura. Estamos falando sobre a Europa e os EUA, os países mais ricos da Terra. Quando começam a fazer vista grossa para essas coisas, isso abala sua fé na humanidade.
O Ocidente estendeu a vida da ditadura?
Não tenho dúvidas sobre isso. Mas isso torna a revolução ainda mais notável. Não havia apenas um ditador brutal com todo o dinheiro do mundo, mas ainda por cima ele tinha aprovação internacional. Ainda assim conseguimos. Isso nos dá uma profunda sensação de confiança.
O senhor voltará para a Líbia para desempenhar um papel na nova democracia?
Não sei. Sou escritor, e artistas enriquecem a sociedade sendo leais à sua arte, não à política. Como cidadão, posso encontrar uma forma de exercer meu papel. Estou ansioso pelo dia em que poderei rever meu país e meu povo.
O senhor acredita que seu pai ainda vive?
Tenho esperanças. Uma vez terminada a revolução, meu irmão e eu vamos procurá-lo. Mas neste instante não podemos fazer nada. Para muitos líbios, há uma história nacional e uma história pessoal nesses eventos. E a história pessoal tem que aguardar.
O que vai acontecer depois?
O que me dá esperança é a forma que o povo está se conduzindo. Rapidamente montaram comitês para administrar os suprimentos e a infra-estrutura. Quando os manifestantes capturaram 18 mercenários em Benghazi, eles os alimentaram e vestiram, deram assistência médica, colocaram seus passaportes na mesa, chamaram um advogado...
...em vez de se vingarem.
São essas coisas que me deixam muito esperançoso. Esta revolução não é sobre a remoção de Gaddafi, isso é apenas uma das histórias. O que está acontecendo é que os líbios estão redescobrindo o que significa ser um povo e uma sociedade. As revoluções não são sobre coisas negativas. Você não pode fazer uma revolução que é apenas para remover, aniquilar ou se livrar de alguém. Tem que ser sobre o que você quer criar. Os líbios estão tentando alcançar um ideal com o qual vêm sonhando há muito tempo. A remoção de Gaddafi é só um meio para um fim.
O que acontecerá quando ele sair?
O DNA do futuro da Líbia precisa estar na revolução. A natureza da revolução é pacífica, ninguém está levantando bandeiras ideológicas ou religiosas. É sobre liberdade, sobre viver com dignidade e segurança. A Líbia é um país excepcionalmente moderado, é aberto ao mundo.
O que deve acontecer aos defensores e cúmplices do regime?
Deve haver uma responsabilização. Mas a vingança não leva à justiça. Nunca desejei vingança, nem mesmo das pessoas que torturaram meu pai. Estou aliviado em ouvir que as outras pessoas que sofreram muito dizem que foi um regime terrível, mas que não devemos pintar todo mundo com o mesmo pincel. A Líbia vai precisar se engajar em um longo processo de cura, movido pelo desejo que isso não volte a acontecer. Nós já vimos os manifestantes recebendo os diplomatas que romperam com Gaddafi nos últimos dias. Todos nós sabemos por quanto tempo eles defenderam o ditador, mas houve muito poucas críticas.
O senhor acha que uma comissão da verdade seria uma solução possível?
Sim, já falei com amigos na África do Sul sobre isso. Precisamos da profundidade de engajamento intelectual e psicológico diante desta loucura nacional que a Alemanha demonstrou após Hitler. Gaddafi não é Hitler, mas a comparação com o exemplo alemão nos ajuda a entender nossa realidade. É diferente da experiência italiana, onde se livraram de Mussolini, julgaram algumas pessoas e prosseguiram. Nunca houve um confronto genuíno com a psicose italiana.
Em seu romance “In the Country of Men” (no país dos homens), o senhor escreveu sobre uma família sob o regime de Gaddafi. Para quando podemos esperar um livro sobre a revolução?
A arte responde muito lentamente aos eventos políticos. Pergunte-me novamente em 20 anos.
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"Líbios estão redescobrindo o que significa ser um povo", diz escritor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU